Sep 06 2008
Entrevista com Marcos Marado
Embora com uma periodicidade que não era a prevista, voltamos com mais uma entrevista.
Desta vez resolvemos entrevistar um dos nossos colaboradores, Marcos Marado, porque é com certeza um dos membros mais activos da comunidade de software livre portuguesa.
Marcos Marado, para além do PL, trabalha com outros projectos livres onde é programador e é também coordenador do DRM-PT.
Começa por nos falar um pouco sobre si.
[Programas Livres] Fala-nos um pouco sobre ti. Quem és tu, de onde vens?
Nasci em Lamego, onde vivi até aos 16 anos. Comecei a usar computadores aos quatro, idade com a qual também iniciei o meu percurso escolar. A paixão por computadores e música começou desde cedo e nunca me abandonou. Comecei a fazer alguns trabalhos relacionados com informática com 12 anos de idade. Aos 16 fui para a Universidade de Coimbra, onde fiz a Licenciatura de cinco anos em Engenharia Informática. Paralelamente trabalhei como freelancer, e depois nas empresas UniOne e Magicbrain. Tendo terminado a licenciatura em 2005, movi-me para Lisboa, onde trabalho na área de ISP da Sonaecom.
[PL] Como começaste nestas andanças do software livre?
[MM] Já antes de saber o que era ao certo Software Livre, achava que “livre” era a forma que muitas coisas deveriam ter. Talvez tenha adquirido um pouco disso na altura em que brincava com BBS’s, e em que tudo o que conseguisses arranjar era teu. Livres ou não, os conteúdos que daí vinham tinham um custo associado: a escolha, a aquisição, a aprendizagem, tudo isso vinha daquele mundo, e tudo isso era possível apenas porque o único custo que havia era a conta telefónica. Mais tarde, o conceito de freeware e shareware, e o interesse por UNIX. Com as minhas primeiras instalações de Minix, Linux e algumas variantes de BSD, apreendi também o conceito de software livre. Tudo no conceito fazia sentido, e nunca mais quis outra coisa.
[PL] Em que projectos participas?
[MM] Os conceitos de “projecto” e “participação” são muito relativos Há muita coisa para fazer, em muitas áreas, e tento ir dando o meu contributo como posso, sempre que posso. Essa participação pode variar tanto como o facto de ter agora uma coluna quinzenal no Programas Livres e coordenar o DRM-PT, ou então o facto de manter o Mamnuts (a única base de talkers actualmente activa), tentar contribuir para o projecto Debian, libsecondlife, GNUnet…
Enfim, vou fazendo um pouco de tudo, contribuindo para os projectos em que me sentir mais motivado na altura. Sinto que qualquer uma das contribuições que faço mereciam mais tempo de mim, e essa é uma das razões pela qual nos últimos anos tenho tentado não ter “projectos meus” ou projectos que dependam demasiado da minha actividade, e, em vez disso, participar em comunidades que, em grupo, ajam numa determinada direcção.
[PL] Qual é a tua motivação?
[MM] É comum ver as pessoas queixarem-se de coisas. Também comum é ver pessoas a aceitar as coisas como elas são, mesmo não gostando disso. A minha posição quanto a isso - genericamente - é que se algo está mal, deve-se compor. Agir, intervir, fazer… não são fins, mas formas de atingir um resultado. Assim, as minhas motivações passam muito pelo “alertar”, porque quantas mais pessoas estiverem conscientes para um problema, mais haverão dispostas a resolvê-lo.
Outra das motivações é “potenciar”: criar as plataformas necessárias para que as pessoas consigam facilmente agir, facilitar o processo de contribuição por parte dos outros. Finalmente, a parte mais complicada de todas: “manter”: as pessoas devem ser incentivadas a continuar a contribuir com determinado projecto, e isso muitas vezes é a parte mais difícil de conseguir.
Existem bons exemplos para isto: o bug #1 do Ubuntu é um óptimo exemplo, visto que o “objectivo último” dessa distribuição é o mesmo que o “objectivo primeiro”: destronar o Microsoft Windows como o sistema operativo mais usado em desktops. Muitos consideraram isto uma piada, e até algo infantil, mas eu discordo: ter aquele bug aberto é dizer “não estamos satisfeitos com o nosso trabalho, e iremos sempre trabalhar para melhorar o Ubuntu, até conseguirmos transformar o software livre como norma, e não como alternativa”.
[PL] Quais são os perigos dos DRM?
[MM] Vou tentar ser breve, se não a entrevista nunca mais acaba
Os sistemas de DRM são sistemas que impõem restrições ao objecto em que são aplicados. Estas restrições são enganosamente apelidadas de “protecções”, mas na realidade as protecções ou direitos que normalmente são referidos (protecção da cópia, direitos autorais, …) já são estipulados pelas leis e regulamentações nos vários países. Mas o maior problema com essas restrições é que elas tiram liberdades aos envolvidos com a obra restringida (não só consumidores mas mesmo até os próprios artistas). Um exemplo disso é o direito à cópia privada: se tu comprares um CD áudio tens direito (coberto pela lei) a fazer um cópia dele para ouvires no carro, e outra para teres no teu leitor de música digital, por exemplo. Caso o CD tenha DRM, já não consegues fazer a cópia, a não ser “quebrando” esse DRM - e cometendo uma ilegalidade. Há quem defenda que isso é “porque os sistemas de DRM ainda não estão aperfeiçoados”. Mas é impossível que um sistema destes algum dia deixe de ser injusto: um sistema destes é, por definição, discreto, enquanto que os direitos não o são. O direito que tu tens de fazer com qualquer coisa é “tudo o que te passar pela cabeça e que não seja ilegal”. É impossível descrever “tudo o que te passar pela cabeça”, e virtualmente impossível definir “tudo o que é ilegal”. Matar uma pessoa com uma faca é ilegal, mas se for em legítima defesa já não é. Ainda que pudesses descrever tudo o que é ilegal, tens o problema da mutabilidade da lei. Se tiveres um sistema de DRM “melhor” que te deixa fazer tudo o que podes legalmente fazer… Como é que ele saberá quando é que a obra entra em domínio público e portanto nenhuma das restrições anteriormente impostas devem agora sê-lo?
[PL] Ainda são um perigo?
[MM] Cada vez mais. Graças a um conjunto enorme de factores, a música foi o “conteúdo ideal” para sofrer primeiro um conjunto grande de alterações. Foi na música que se experimentaram muitos formatos, foi com a música que a chamada “pirataria” atingiu uma nova escala, e foi com a música que o DRM se tornou num tópico quente de debate. Mas isso é apenas o começo. Há projectos para ter DRM em muitas mais coisas: hardware (ex: Trusted Computing), software, filmes, livros… E com a miniaturização, ter hardware com DRM implica ter DRM não só no teu telemóvel, mas também no teu carro, na fechadura da tua casa, no teu frigorífico, no teu micro-ondas… Queres mesmo viver num mundo rodeado de restrições? Porque é para aí que estamos a caminhar.
[PL] Fazes musica. que tipo de licenciamento utilizas?
[MM] Tenho música com vários tipos de licenciamento, incluindo algumas em domínio público, mas a maioria - e actualmente - a “norma” para a publicação de música é usar uma licença Creative Commons Attribution 2.5 Portugal. Não é domínio público porque o domínio público tem muitas “áreas cinzentas” e é interpretado de variadíssimas formas consoante a legislação de cada país.
Senti a necessidade de licenciar a minha música com Creative Commons porque é “mais justo”. Um amigo meu um dia disse-me, pouco pois do primeiro lançamento de Merankorii ter esgotado, “hey! não sabia que fazias música! ouvi o teu CD e gostei muito, até fiz uma cópia para mim!”. Isso deixou-me contente, não triste. Cada vez que encontro a minha música a ser ouvida por alguém, tenho um certo sentimento de realização. Será que devo culpabilizar aqueles que decidem querer copiar a minha música? Não é só o facto de, ao poder copiá-la, as pessoas vão estar a divulgar o meu projecto musical. É mais, é principalmente o facto de compreender que quem quiser comprar a minha música compra-a, quem não estiver disposto a dar dinheiro por ela não vai dar, tenha a música ou não. Portanto, se querem a música à mesma, porque não hão-de tê-la? Porque quererei eu restringir o número de ouvintes da minha música àquele que decidir comprá-la? Posso dizer-te que até agora tem sido uma experiência muito positiva. Não só o facto de ter uma licença Creative Commons me abriu muitas portas enquanto artista, como acabou mesmo por ser mais lucrativo monetariamente desta forma. Se fizeres as pessoas querer comprar-te um album, elas compram. O resto é irrelevante.
[PL] porque as licenças creative commons são tão importantes?
[MM] Há muitas respostas para isto. Para alguns, como para mim e como te disse anteriormente, o copyright como está actualmente instituído faz pouco sentido. Com as licenças creative commons, cada autor tem a possibilidade de, legalmente, definir exactamente o que quer que possa ou não possa ser feito da sua obra. Numa última instância, as creative commons, simplesmente existindo, aumentam o leque de possibilidades - e liberdades - aos autores e aos consumidores. Para outros, as Creative Commons são formas viáveis de fazer um negócio justo e lucrativo. Para outros, as Creative Commons são uma forma (por vezes a única forma) de obter conteúdo e informação de qualidade e de forma legal. Mas eu não sou, certamente, a melhor pessoa para explicar porque é que estas licenças são importantes: podes ler em http://bit.ly/CreativeCommons o porquê delas terem sido criadas… Depois desses porquês, a resposta é “são importantes porque existem”
[PL] De forma reduzida de que forma os nossos direitos estão em perigo na Internet?
A Internet é pouco mais do que uma extensão da realidade. Os perigos que enfrentamos na Internet não são diferentes daqueles que enfrentamos quando vamos a caminhar na rua, com a diferença que o perigo está, na realidade, em nós - na nossa percepção. As pessoas têm uma percepção diferente das coisas quando elas se encontram em formato digital. Há muitas pessoas que nunca seriam apanhadas vestidas de certa forma mas que exibem orgulhosamente fotografias delas exactamente dessa forma numa rede social. Há muitas pessoas que nunca assinariam um contrato sem antes o ler, mas aceitam uns “Termos de Serviço” de um site sem os ler sem sequer aperceber-se de que o fizeram. As pessoas dificilmente passariam o cartão de crédito para as mãos de um desconhecido, mas rapidamente o usam num site web de aspecto duvidoso. Assim, os perigos na Internet são, simplesmente, as pessoas não a entenderem como uma simples extenção da chamada “vida real”. Da mesma forma, temos não só legisladores que, não entendendo este mesmo conceito, legislam sobre a Internet, e pessoas que, sabendo que a maioria não tem esta percepção, usam essa falha para as explorar. E não falo apenas das actividades claramente ilegais, como a usurpação de credenciais de cartões de crédito ou o SPAM, falo também e até principalmente daqueles que, muitas vezes através as suas corporações, usam estas falhas para que, dentro da lei (ou mesmo moldando-a), explorem, controlem e lucrem imoralmente desta mesma falta de noção.
[PL] Quanto tempo reservas para estes projectos? Como é que consegues conciliar estes projectos na tua vida?
[MM] Quais projectos? Qual vida? Não costumo fazer uma grande distinção entre “projectos pessoais” e “vida”. Afinal, a minha vida não é mais do que composta por objectivos e a tentativa de os cumprir. Tal como gosto de ler um bom livro (poderá a leitura ser considerada um “projecto pessoal”?), também gosto de ver um bom documentário - ou ajudar a escrever um. Tal como gosto de ouvir música, gosto de a tocar, gravar, e ajudar outros a fazer o mesmo. Tal como gosto de usar software, também gosto de escrever software para outros usarem. Tudo isso faz parte da minha vida. É claro que nem tudo é simples: o meu maior problema é sempre a sensação de estar metido em mais coisas do que aquelas para as quais tenho tempo para despender, associado à frustração de não poder fazer mais, ou melhor, e à dificuldade a resistir a um novo desafio…
[PL] Muitas pessoas tem medo de criar software e de o tornar livre, por vários motivos. O que dirias a essas pessoas?
[MM] Bem, provavelmente começaria por perguntar-lhes os motivos, e depois contra-pô-los-ia um a um…
Existem muitas razões (e muito diversas) pelas quais as pessoas não querem tornar o seu software livre, mas também muitas razões - e também elas muito diversas - para escrever software livre. Desde ao “arranjar quem me ajude a fazer isto sem ter de lhe pagar”, até ao “quero reconhecimento pelo meu trabalho” ou o “quero fazer do mundo algo melhor”, cada pessoa que contribui para o software livre tem as suas próprias razões: normalmente não um único factor mas um conjunto deles. É particularmente interessante ter esta conversa quando se trata de software desenvolvido por empresas: a maior parte delas faz muito código para o qual só benificiariam (bug reports, patches com fixes ou enhancements, novas sugestões, novas funcionalidades, desenvolvimento mais rápido, et cetera) se ele fosse tornado software livre, mas essas empresas não o fazem porque… não é costume. Nalguns destes casos basta começar a apresentar razões (menos ou iguais custos para obter um produto melhor, ou então “a comunidade passa a manter o código, em vez de deixar-mos isto estagnar como está”) e pouco tempo depois a empresa percebe que realmente benificiaria com a publicação do seu trabalho em software livre - mesmo que acabe por não o fazer (a inércia e os hábitos são coisas difíceis de combater…).
Mas, e para o “programador individual”? Bem… Se eu criar um diário e apontar lá os meus pensamentos sobre as mais variadas coisas - por exemplo o meu blog pessoal - terei de despender lá muito mais tempo do que já alguma vez despendi a contribuir para a wikipédia. No entanto, a wikipédia tem infinitamente mais informação - mais completa e rigorosa - que o meu blog. A diferença é que num ambiente, estás a fazer o que queres fazer, no outro estás a fazer algo num ambiente comunitário, e aquilo que começa sendo uma “comunidade de 1″ pode passar a ser uma comunidade maior e maior. Houve uma pessoa que, de Outubro a Dezembro de 2002, decidiu contribuir para a Wikipédia. Durante esse período, escreveu uma entrada sobre Talkers, cuja versão final - dele - tinha oito parágrafos e 1726 caracteres. E nunca mais lhe tocou. Se ele hoje precisar outra vez de se referir a talkers, e quiser, por exemplo, fazer um link para essa mesma página, vai encontrar um artigo activamente mantido, por diversas pessoas, com oito secções, mais de doze mil caracteres, e uma tradução. Com o software o paradigma é exactamente o mesmo: ao dar as quatro liberdades àquele código (executar, estudar, distribuir e melhorar), o programador está a potenciar a divulgação, o uso e o melhoramento desse mesmo código. No final todos ganham: incluindo o programador.
[PL] O que pensas da comunidade de software livre em Portugal, do seu presente e futuro?
[MM] A comunidade de software livre em Portugal está boa e recomenda-se. Dito isto, há que realçar a maior falha que encontro nela: falta de coesão. Existem muitas iniciativas e eventos, mas as áreas raramente se cruzam. Ainda há dias estava a falar com alguém que me dizia sentir-se frustrada por ver uma comunidade de software livre, outra de música livre, mas nenhuma para “artes livres”. Eu diria que tudo deve ter (e tem) lugar no mesmo sítio. Claro que faz sentido haver um DebianDay para os fans de Debian, e um ENOS para os de SuSE, mas porque é que não os vejo num evento mais genérico, sobre Linux? Ou mesmo sobre tecnologia? No recente DebianDayPT vi uma apresentação com direito a muitos comentários, sobre software livre nas escolas, tema aliás que já tinha sido abordado anteriormente nesse dia. Todos gostaram (que me tenha apercebido) do conceito, mas quantos deles são sócios, ou de outra forma contribuem para o www.escolaslivres.org ? A comunidade de software livre em Portugal precisa de uma “frente”, um ponto de agregação, um “lugar comum”. Com esse objectivo existe a ANSOL, mas quantos da comunidade estão de alguma forma relacionados com a ANSOL? Foi excelente ver a reacção que houve em Portugal aquando da campanha anti-OOXML. Milhares de assinaturas, divulgação, debate, consciencialização. Quantas dessas pessoas responderam a um inquérito do DRM-PT sobre o uso de formatos físicos, para fazer frente na União Europeia sobre um tema tão pertinente como as levies? Menos de cem. A solução não é fácil, mas é algo que gostava de ver mais debatido ou trabalhado: como aumentar a coesão e o alerta de toda a comunidade de software livre em Portugal. Ora, aí está um bom tema de debate para um próximo evento!
Mais uma de muitas que se esperam excelentes entrevistas que esperam. Talvez passar do formato entrevista por e-mail para algo mais interactivo. O que acham?
[...] Marcos Marado já falou deste problema na entrevista que gentilmente cedeu ao Programas Livres. Quando se trata do “mundo digital”, não [...]