Jan 31 2009
Stallman - Defeito ou Feitio?
Este é um tema recorrente quando se fala de Software Livre: é impossível falar muito de Software Livre sem referir uma ou outra vez o seu pai, Richard Stallman. Para exemplificar, o Stallman já foi tema no PL quinze vezes, à data de publicação deste artigo.
Stallman é uma pessoa forte, carismática e peculiar. Tão peculiar que muitas vezes a comunidade do Software Livre se divide quanto à sua opinião perante Stallman: alguns admiram-no, outros abominam-no. Nada disso importa a esta coluna sobre “direitos digitais”, logo que não se quebre uma regra - que se respeite Stallman por aquilo que é. R. Stallman defende o que acredita - e muito tem feito quanto aos direitos digitais - e defende-o de forma íntegra, não atraiçoando os seus princípios. E isso é uma coisa difícil de entender e respeitar.
A falar disto, melhor do que em qualquer outro artigo que já tenha lido, está Paula Simões no seu recente artigo intitulado Stallman.
Assim, e com permissão da autora, o Programas Livres republica na íntegra o seu artigo:
Já há bastante tempo que tenho uma nota para fazer um post sobre o Stallman. Recentemente, aconteceu algo que me fez colocá-lo à frente de outros posts.
Costumo usar o FriendFeed, onde agrego um conjunto de aplicações web. Costumo ainda, e porque uso pouco o Twitter, enviar para este último o que partilho no FriendFeed.
Por estes dias, consultei a página do Richard Stallman e partilhei duas informações. Uma dela sobre países que não têm cartão de identificação nacional, que me surpreendeu e outra, já passada em 2005, sobre livros do Harry Potter, que foram vendidos por engano e cuja autora recorreu aos tribunais para impedir as pessoas que os compraram de os ler. Really!
Pouco depois recebi dois Tweets, sendo um deles um RT, em que se dizia que o sr. Stallman não usa o OLPC por o CPU poder correr Windows, terminando por o acusar de radicalismo. (Como o tweet nada tem a ver com a informação que partilhei, deduzo apenas que o seu objectivo era tentar mostrar-me que o sr. Stallman não é uma pessoa “fixe”)
Antes de mais, deixem-me explicar que isto não é exactamente assim. Vamos retirar os elementos identificadores, de forma a eliminarmos amores e ódios, e tentarmos perceber isto de forma imparcial:
- Uma pessoa A acredita, defende e apoia um conjunto de valores, opiniões
- Essa pessoa A começa a usar um produto de um projecto que promove esse mesmo conjunto de valores
- A certa altura, o projecto muda a sua orientação passando a apoiar um conjunto de valores contrários ao que a pessoa A acredita
- A pessoa A deixa de usar o produto do projecto e explica a quem pergunta que não apoia esse projecto.
Explicação da pessoa A:
Q: I know you have a OLPC XO.
RMS: The XO was inconvenient in several ways, but I switched to it anyway because it has a free BIOS. At the time I made the decision, every other laptop had a proprietary BIOS, and I was willing to accept some practical trouble to escape from that. But just as I was finishing the move to the XO, Negroponte was announcing that future versions of the XO would be designed to run Windows. As a result, I felt obliged to explain to everyone who saw the XO that I did not endorse the OLPC project.
Isto parece-vos radical? Chamem-me esquisita e mau-feitio, a mim parece-me coerente, natural e expectável.
Mas deixem-me ainda dar-vos dois exemplos de situações reais semelhantes:
O primeiro, vem do mundo dos livros.
Aqui há tempos, o escritor Lobo Antunes começou a organizar uma colecção de livros, para a sua editora, escolhendo e prefaciando os livros. Saíram dois: “A morte de Ivan Ilitch“, do Tolstoy e um título, de que não me recordo agora, do Alphonse Daudet. O sr. Lobo Antunes fez o prefácio e a editora colocou publicidade a outros livros e fez uma sinopse na contra-capa do livro do Tolstoy. O sr. Lobo Antunes não concordou com nenhuma destas iniciativas e deixou de criar a colecção.
Deixo-vos a explicação, do sr. Lobo Antunes, dada à Ler de Maio de 2008 (Se ainda conseguirem aconselho-vos a encontrar a revista - talvez numa biblioteca - e a lê-la na íntegra):
O que é que requer de uma editora?
O mesmo amor que eu pelos livros. Que este amor seja partilhado. Por exemplo, tinha a ideia de fazer uma colecção para pôr as pessoas a lerem livros.
Foram publicados dois até agora.
Sim, saíram dois e não vai sair mais nenhum.
Porquê?
Não posso conceber que no fim do livro do Tolstoy venha propaganda aos livros que lá estão. Não o posso conceber: Tolstoy não pode ter ninguém ao pé. Pediram-me um pequeno prefácio. No pequeno prefácio, eu tentava explicar o que era A Morte de Ivan Ilitch. Se era um livro sobre a morte, se não era um livro sobre a morte. Foi uma discussão que houve durante muito tempo. O livro é tão complexo e tão rico. Falava lá, pela rama, no Lukács, que negava que fosse um livro sobre a morte, etc., por aí fora. Contra-capa do livro: “Este livro aborda o tema da morte”. Dá vontade de não escrever mais para aquilo, não é? Quer dizer, não têm o direito de fazer isto ao Tolstoy. Primeiro, os livros não abordam nada, porque não são corsários. E, segundo, não é de facto um livro sobre a morte. Depois, o resumo da vida dele em sete linhas é uma coisa miserável. Orfão desde tenra idade - é mais ou menos assim - frequentou a universidade daqui e dali, sem ter acabado o curso. Bardamerda! O que é que isto interessa? Fiquei revoltado com isto tudo. Não se pode tratar assim um grande autor.
Diriam que o sr. Lobo Antunes é um radical? Chamem-me esquisita, mas eu considero estar em presença de um homem com carácter, que não se coíbe de abandonar um projecto (que até poderia ser pago) a partir do momento em que esse projecto vai contra aquilo em que acredita e defende.
O segundo caso, vem da área do jornalismo e está na Lei Portuguesa. Um jornalista que trabalha para um órgão de comunicação social pode fazer cessar o seu contrato com justa causa, caso haja uma modificação profunda na linha de orientação ou natureza desse órgão de comunicação social, invocando a cláusula de consciência.
Estatuto do Jornalista
(Lei n.º 1/99 de 13 de Janeiro)Artigo 12.º
Independência dos jornalistas e cláusula de consciência2 - Em caso de alteração profunda na linha de orientação ou na natureza do órgão de comunicação social, confirmada pela Alta Autoridade para a Comunicação Social a requerimento do jornalista, apresentado no prazo de 60 dias, este poderá fazer cessar a relação de trabalho com justa causa, tendo direito à respectiva indemnização, nos termos da legislação laboral aplicável.
Parece-vos isto radical? A mim, não.
Onde alguns vêem radicalismo, eu vejo coerência. Talvez seja de mim, mas eu posso provar o que digo.
No ano passado, o sr. Stallman deu uma entrevista que pode ser lida aqui.
A certa altura, o entrevistador pergunta se o Stallman concorda com a ideia que quando a polícia pune quem usa software ilegal, isso é bom para o software livre. O sr. Stallman responde que é uma conclusão lógica, uma vez que se for mais difícil às pessoas usar software ilegal, alguns passarão a usar software livre.
Mas o sr. Stallman classifica logo de amoral, esta postura. Porquê? Porque a ideia base do software livre é que impedir a partilha e alteração do software é uma injustiça, e por isso não devemos aplaudir a punição feita.
Uma pessoa que continua a defender as suas ideias e aquilo em que acredita, mesmo quando isso pode ser prejudicial à sua causa é, na minha óptica, uma pessoa de carácter, coerente e que não se vende facilmente.
Deixo-vos o excerto da entrevista:
Q: Some GNU/Linux and free software fans think that non authorized copies of proprietary software (that are widely used in our country, Italy) are a brake on free software spread. So, when police punish who uses non authorized copies, fans are happy. They think: “Ok, ‘cracked’ Microsoft Windows users will install free software now”. Are these fans in right or not?
RMS: At the tactical level, their conclusion is logical: if it were more difficult to copy Windows, it would be more expensive to use, and the price would send some users towards GNU/Linux and other free systems.
If just increasing the usage of these systems were our ultimate goal,it would be rational to applaud the repression of sharing of non-free software.
But that kind of thinking is amoral. We must not applaud an act of repression, even if we think that it will backfire and drive people to rebel.
The basic idea of the free software movement is that stopping people from sharing and changing software is an injustice. When the police punish people for sharing, they commit an injustice. We must not call this a good thing!
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Marcos Marado escreve no PL ao Sábado sobre Direitos Digitais. Podem encontrar mais artigos como este no seu blog pessoal. |
Deixo aqui transcrito o comentário que já tinha feito no blog da Paula:
«Goste-se ou não de Richard Stallman (eu não gosto nem deixo de gostar, pelo simples facto de não o conhecer), é impossível ficar indiferente às suas convicções e coerência. Às vezes, a incapacidade de ficar indiferente pende para os ataques parvos… Bem, faz parte da vida, goste-se ou não (eu não gosto).»
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